Sobre alertas
(Alertas climáticos e alertas contidos em 1984, passados 75 anos da sua publicação)
Na Grécia, quatro estrangeiros morreram nos últimos dias. Um deles, médico e conhecido apresentador de programas para a televisão inglesa, foi encontrado sem vida depois de quatro dias desaparecido. Disse à mulher que iria dar uma caminhada. Ele, assim como as outras três vítimas, tinham mais de 65 anos. Além dessas quatro pessoas, há mais cinco desaparecidos. Eram (ou ainda são) turistas em férias.
O veraneio na Grécia começou férvido: as temperaturas estão altas, superando facilmente os quarenta graus. Algumas das atrações turísticas do país como o Parthénon têm sido fechadas durante as horas em que as temperaturas estão mais elevadas. Como forma de combater o calor, medidas paliativas são oferecidas: distribuição de água mineral, aspersores refrescam os passantes acalorados, mas as temperaturas altas não cedem, de maneira que as autoridades vêm pedindo às pessoas cautela, recomendando, em particular às mais idosas, não se exporem ao sol nos horários de pico.
Para quem já se esqueceu, também fez muito calor no ano passado na Grécia. E incêndios violentos assolaram o país – centenas deles ocorreram entre julho e agosto -, devorando matas e propriedades, matando ou ferindo pessoas e animais. Conforme dados divulgados em reportagens da The Parliament Magazine (LINK) apenas na Grécia, queimaram 96000 hectares e as previsões para 2024 não são animadoras; com as temperaturas a bater recordes a cada novo ano, é muito provável que os incêndios tornem a se repetir. O governo grego já emitiu alertas depois de semanas de canícula.
Alertas também foram emitidos no Equador, mas para inundações e deslizamentos de terra. Só que de pouco adiantaram, já que a população não sabia como proceder, pois nunca em suas vidas enfrentaram algo semelhante. E, verdade seja dita, nem tiveram tempo de reagir, tamanha a violência da água; as imagens mostram a aluvião levando tudo: árvores, estradas, carros, enfim cenas muito semelhantes às vistas anteriormente no Rio Grande do Sul, onde, aliás, voltou a chover. Na quarta-feira, em Porto Alegre, as águas do Guaíba vinham subindo e alguns dos bairros ribeirinhos já tinham ruas alagadas.
Alertas também nos Estados Unidos onde, conforme matéria publicada pela BBC, um em cada cinco americanos está sob ameaça de sofrer consequências de algum evento climático: calor extremo, temporais com ventos ciclônicos ou incêndios.
Assim, de uma passada rápida pelo noticiário, cheguei à conclusão de que não nos podemos queixar de falta de avisos. Aliás, cientistas, instituições de pesquisa e afins vêm emitindo alertas há anos. O Carl Sagan, por exemplo, já alertava para as consequências deletérias do efeito estufa e do aquecimento global em 1985. Há dois dias, se muito, assisti um trecho de uma fala dele durante a qual ele pergunta à plateia se alguém tinha ideia do montante que os Estados Unidos tinham investido em armamento desde 1945, período pós Segunda Guerra e de início da Guerra Fria. Não, não eram os bilhões e bilhões que alguém da plateia eventualmente mencionava, mas dez trilhões de dólares (o vídeo é do século passado. Os valores teriam de ser recalculados), valor suficiente na época para adquirir todo e qualquer bem existente no país com a exceção dos terrenos. Então ele torna a perguntar: qual o nível de certeza de que os russos invadiriam? Ele mesmo responde que não eram de 100%, uma vez que a invasão jamais ocorreu. O que diriam os defensores dos gastos bélicos se a probabilidade existisse, mas fosse menor? Uma probabilidade de dez por cento? Que era necessário ser prudente e investir em prevenção, o que os americanos – e agora não apenas, mas os alemães, poloneses, enfim, todos os membros da OTAN, além dos russos, chineses, japoneses – vêm fazendo, principalmente nos últimos dois anos. No entanto, quando se trata de prevenção contra os efeitos do aquecimento global, cujas consequências para a humanidade podem (e vem se revelando) terríveis, a mesma linha de argumentação não é aplicada. Por quê? Dois pesos e duas medidas, conclui ele, algo que não deveríamos permitir que acontecesse. Mas não apenas permitimos, como muitos ainda negam que esteja ocorrendo, ou que os desastres tenham influência das mudanças climáticas, de modo que avançamos em direção à neutralidade carbônica em velocidade paquidérmica.
Dois pesos e duas medidas. Para armas, trilhões de dólares. Para a prevenção de desastres climáticos anunciados pelos cientistas, uns trocados. Como resultado, as nações podem ter arsenais repletos de bombas, tanques e aviões último tipo (os países membros da OTAN terão de investir pelo menos 2% do seu PIB em armas), mas as águas podem invadir suas cidades e destruir infraestruturas, inundar plantações sem que muito possa ser feito para evitar. Em outras partes do globo, a água escasseia, as represas secam, a canícula castiga, as pessoas morrem de calor, as florestas incendeiam. E assim vamos, mas os alertas não faltam. São emitidos aos montes: cuidado, chuvas intensas, perigo de desmoronamento, de temperaturas altíssimas, de incêndio. E nós, devidamente alertados, ficamos a cuidar o céu, o nível das águas, os termômetros, como que deixados à nossa própria sorte. Seria até engraçado se não fosse absurdo. E o pior é que nós permitimos, como bem disse o Carl Sagan.
Dia 8 de junho completaram-se setenta e cinco anos da publicação de 1984, de George Orwell. O autor, Eric Blair de nascimento, faleceu menos de um ano depois da publicação do livro, em 21 de janeiro de 1950, vítima de tuberculose.
Nos últimos dias, tornei a ler o livro e apesar de ter encontrado na leitura pontos que me pareceram problemáticos e para os quais não havia atentado na primeira leitura, voltei a me impressionar com a sua capacidade de compreender a ideologia da manutenção do poder pelo domínio completo do indivíduo. Como ressaltou James Woods em um ensaio para a New Yorker : “os momentos mais apavorantes em 1984 surgem quando o estado já leu a mente de Winston Smith e está determinado a abolir a sua interioridade”. Não há espaço para o livre pensamento, para a vida privada, para nada além do estado. É O´Brien, o torturador/disciplinador que afirma: “É intolerável para nós a existência, em qualquer parte do mundo, de um pensamento incorreto, por mais secreto e impotente que seja. Nem no momento da morte podemos permitir o mínimo desvio”. E, páginas adiante, esclarecendo a Winston, os motivos que levavam o Partido a agir assim: “Poder não é um meio, mas um fim” e também: “[…] poder é poder sobre os seres humanos. Sobre corpos – mas, acima de tudo, sobre as mentes”. E, como bem ressalta Woods, quando lemos isso, não é possível fazê-lo sem sentir um arrepio na espinha, principalmente se acompanhamos o noticiário político e nos deparamos com situações que se parecem – e muito – com as descrições orwellianas do funcionamento do estado na Oceânia de 1984. A distopia está cada vez mais real.
Os melhores livros, como conclui o próprio Winston antes de ser preso pela Polícia do Pensamento, “são aqueles que lhe dizem o que você já sabe”. É verdade. E é por isso que continuamos a ler George Orwell, passados 75 anos do lançamento da sua distopia. É quase um exercício de tortura lê-lo nos dias que correm e observar a sua atualidade. As táticas utilizadas pelos estados e partidos para manipular a opinião pública e influenciar eleições, definir pleitos, controlar opiniões já estavam lá, descritas na sua obra. São parte importante na estratégia de tomada do poder. E todos temos a consciência do que se seguirá porque “sabemos que ninguém toma o poder com o objetivo de abandoná-lo. Poder não é um meio, mas um fim. Não se estabelece uma ditadura para proteger uma revolução. Faz-se uma revolução para instalar uma ditadura”.
Não é à toa que o conhecimento, a cultura e os livros eram modificados em 1984 . Quem controlava o passado, controlava o presente, como bem sabia Winston e também os censores que, há tempos, incineravam livros (na Alemanha nazista, por exemplo, e em Fahrenheit 451), ou a cancelá-los, como tem acontecido no Brasil.
Ignorância é força, um dos lemas do Partido em 1984. Poderia ser um slogan adotado por políticos e instituições governamentais brasileiras que vêm tentando proibir leituras, controlar narrativas, direcionar comportamentos. Pode parecer que são estúpidos, mas não se engane: eles sabem muito bem onde querem chegar: ao poder. E, como descreve Orwell na sua obra-prima, almejam lá permanecer.
Para tentar evitar que isso aconteça, o melhor é atacar a ignorância. Não com pedras ou insultos, mas com a leitura, com o estudo. Optar em ler alguns dos livros censurados, por exemplo. Taí um ótimo começo.